Era ainda muito cedo e Zézinho já estava a caminho. O seu irmão mais velho, o Manel, era o ardina da aldeia e antes de sair de casa para fazer chegar o mundo inteiro à sua aldeia, tinha o cuidado de o acordar. Todas as manhãs cumpriam o mesmo ritual. Manel deixava o leite já aquecido para o irmão, enquanto Zézinho lhes preparava a merenda para a bucha da manhã.
A doença repentina e posterior morte da mãe obrigara-os a trabalhar cedo. O suor do trabalho do pai não chegava para o mês todo e eles decidiram trabalhar. Manel tinha apenas mais 2 anos que Zézinho, que só contava 10. Contudo, não abandonaram a escola. Trabalhadores-estudantes eram o orgulho do pai, que por vezes se sentia envergonhado pela situação em que os tinha colocado.
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Zézinho era aprendiz num estúdio fotográfico. Todas as manhãs abria a porta da loja, subia os estores e ligava a caixa registadora. Lá dentro, na ante sala, verificava se os espelhos estavam limpos, colocava os pentes na tina, borrifava-lhes álcool para os desinfectar e matar algum piolho que lá tivesse ficado e colocava a tina à janela para que o álcool evaporasse mais depressa. Depois, dirigia-se à sala onde tudo acontecia. Reorganizava os painéis, ajeitava o conteúdo do velho baú, limpava as lentes, verificava a iluminação e a altura dos bancos – gostava de os ver nivelados à mesma altura. Tinha para si que aquele espaço deveria parecer sempre novo.
Enquanto preparava todo o cenário para mais um dia de emoções, sonhava com o dia em que deixaria de ser aprendiz e se tornaria num profissional como o Sr. Jacinto, o fotógrafo.
O Sr. Jacinto era experiente. No ramo há muitos anos, também ele havia começado como Zézinho, limpando e organizando a loja e, por isso dava muito valor ao seu trabalho.
Quando o Sr. Jacinto chegava, tudo estava pronto. E nessa altura Zézinho saía a correr para se encontrar com Manel na praça e juntos seguirem para a escola. Só tinham aulas de manhã e isso dava ao Zézinho tempo para regressar à loja e ajudar o Sr. Jacinto no que ainda fosse preciso. Afinal era seu aprendiz e queria ser como ele.
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Era aí que tudo começava! A partir dessa altura Zézinho entrava no mundo mágico dos sonhos. No mundo mágico das pessoas que sonhavam acordadas. Das pessoas que imortalizavam momentos que apenas existiam para si próprias. E Zézinho sonhava com elas. Viajava com as personagens que aquelas pessoas queriam representar e com elas travava grandes diálogos.
O Sr. Jacinto dizia muitas vezes a Zézinho:
“A vida é uma fantasia. Toda a gente tem o direito de sonhar.”
Por isso o velho baú do estúdio guardava em si vestes. Não havia quem ali entrasse que não se fantasiasse de qualquer coisa. Algumas pessoas chegavam mesmo a levar adereços de casa e a oferecê-los ao Sr. Jacinto “para quem com eles quisesse sonhar!”
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O estúdio era pequeno e apertado, mas lá era possível dar a volta ao mundo inteiro, quase com um passe de magia, uma simples troca de painéis. Era possível transformar o dia em noite em segundos… Sonho e realidade misturavam-se constantemente naquele estúdio.
A D. Elisa era uma dama. Uma vez por semana entrava no estúdio. Zézinho já sabia quem ela queria ser, então, à quarta-feira até ia mais cedo para preparar também as coisas dela. Adorava a felicidade com que a senhora saía dali.
Ela esmerava-se tanto nas roupas e adereços, que muitas vezes parecia mesmo uma Rainha do século XVIII. Escolhia sempre um figurino de época. Maquilhava-se já com as mãos trémulas e, para dar impressão de saúde, coloria a face com ‘rouge’. O saiote rodado e as saias enormes sobre arames, encorpavam os tecidos moles que nunca tinha tido vergonha de os mostrar. Mas ali não. Ali sentia-se como uma rainha. Preparava-se, o rosto tornava-se sério, colocava-se em pose erecta, mais por causa do corpete, e parecia que estava pronta a transformar todos à sua volta em servos e lacaios.
Ao fundo, o Sr. Jacinto prepara tudo. Escolhe o painel perfeito, com outro palácio ao fundo antecedido por um esplendoroso jardim de flores brancas e vermelhas. No centro um repuxo que brota água da boca de pequenos anjos. Alguns nobres de tal forma retratados que parecia que lhe faziam a ‘corte’. Tudo milimetricamente arranjado para que a foto ficasse perfeita. Como se D. Elisa estivesse lá, efectivamente.
O Sr. Jacinto interrompe o sonho por uns segundos:
“- Atenção… Isso mesmo… e
“buf”!
Uma e outra, e outra vez mais. O flash vai disparando à medida que D. Elisa vai mudando de ‘pose’.
Depois D. Elisa troca de roupa, sai e vai muito satisfeita. No final do dia o Sr. Jacinto levará as fotos a sua casa, para que escolha as que melhor ilustram o seu sonho…
Na ante sala outro cliente se prepara… É o Sr. João, o padeiro… vai ser comandante.
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A verdade é que todos os clientes do Sr. Jacinto saiam da sua loja muito satisfeitos. De alma renovada. De peito inchado. E o Sr. Jacinto achava que ainda era vivo por isso mesmo. Por ter o dom de fazer os outros felizes.
“Toda a gente tem o direito de sonhar” e no Estúdio Fotográfico do Sr. Jacinto, todos os sonhos se tornavam realidade.
Era isso que fascinava o pequeno Zézinho e o fazia levantar-se antes das galinhas… para ajudar o Sr. Jacinto a realizar sonhos.
“Um dia sou eu que os vou realizar” – pensava ele com um sorriso nos lábios…
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Lá fora a placa, em letras grandes:
FOTOGRAFAM-SE SONHOS