quinta-feira, 24 de março de 2011

A Menina

 

 

menina ao solEra uma vez uma menina que tinha um sonho….

Ou…

Era uma vez uma menina normal.

[A menina era igualzinha a todas as outras que por aí andam. Não tinha olhos angelicais, nem caracóis doirados… nem era de beleza rara. Também não parecia um anjo]

Então…

Era uma vez uma menina, que tinha sonhos, como todas as outras e que um dia, ao acordar, decidiu sentar-se à janela (há muito que não o fazia). Ali sentada à janela, a menina despiu as emoções deixou sair os fantasmas. Sorriu ao Sol que a tomou para si e a levou por caminhos que só ele conhece. Perdida no seu colo, a menina deixou-se envolver pelo seu calor e afecto. Perdida no seu afecto, a menina deixou-se encantar. Quando deu por si, acordou.

 

Hoje acordei e decidi sentar-me à janela de mim (há muito que o não fazia). Despi as emoções como se fossem pertença de um guarda-roupa de teatro e olhei-me nua. Deixei sair os meus fantasmas e exorcismos. Sorri ao sol e este tomou-me de pronto, como se fosse só sua e levou-me pelos caminhos que só ele conhece. Perdida no seu colo deixei que me oferecesse búzios e conchas do mar da minha infância e ai ela (a menina que vive dentro de mim) acordou também...

Quando regressei trazia intuídas as palavras de um "mestre":

" Sinto-te como um som imaginado dentro de um búzio... acredito que na vida nada do que é importante se perde... a não ser a ilusão de que tudo pode ser nosso para sempre" (...) (Miguel Sousa Tavares)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Isto é um Vale...

Vale por mim, vale por ti e vale por nós!
Vale tudo e não vale nada, vale um beijo, vale um abraço, vale uma carícia, vale um momento…
Vale o que tu quiseres…!
Vitalício ou apenas por um segundo…
Vale uma estrela, o luar, o sol… sei lá…
Uma onda do mar, um grão de areia,
Uma história de amor…
Um simples encontro a dois
Ou uma noite com os amigos…
Vale uma tarde de Domingo a dormir…!
Vale uma flor, vale um jardim inteiro…
…Uma folha de papel…
Vale um sentimento, um sorriso…
Uma palmada nas costas, um sermão,
Uma oportunidade…
Valer por valer… vale tudo e não vale nada!

Vale Amizade.
Vale Amor.
Vale Sexo.
Vale Prazer.
Sangue, suor e lágrimas.
Vale por aqueles que gostam de nós…
E pelos que não gostam também…!
Vale porque sim…
Vale porque não…
Vale por mim, vale por ti e vale por nós…!

…É o que vale.

sábado, 28 de agosto de 2010

Alice

|stollen from DeviantArt|

Quando abriu a janela, estremeceu. Fitou-se no horizonte por uns instantes e voltou a fechar as vidraças. Correu as cortinas e voltou a deitar-se. Aquele tempo deixava-a deprimida e já estava assim há alguns dias.

Depois de duas ou três voltas na cama decidiu levantar-se e contrariar tudo o que tinha vivido até aqui. Contrariar o tempo e as depressões por ele marcadas.
Desceu a escadaria a correr e foi até à cozinha.Tirou um café. Acendeu um cigarro. Enquanto fumava e fazia argolas de fumo para o ar a gata, feita louca, tentava apanhar as bolas que se desfaziam assim, sem mais nem menos.
Apagou o cigarro e acendeu outro.
Acariciou a bichana e ainda lhe disse:
- "Sofia, deixa de ser parva, pá! Não vês que por mais cigarros que eu acenda e por mais bolas que faça... tu não vais conseguir apanhá-las?"
Ela respondeu-lhe com um "miau" que lhe soou a desilusão e ao mesmo tempo a desafio. Não deu importância.

Em poucos minutos vestiu o que lhe apareceu primeiro à frente - uma t-shirt, que obtera numa promoção de uma qualquer marca de detergente para a roupa, uns jeans e um par de ténis - passou a escova pela cabeleira negra e espigada, lavou os dentes e quase sem pensar, pegou na chave do carro - uma lata velha recentemente comprada a um velho que lho vendeu por 300 euros - e saiu.
O depósito de gasolina estava praticamente vazio e não sabia sequer se chegava à bomba. No entanto arrancou, ao mesmo tempo que ia falando com aquela lata velha:
- "Vá! Aguenta-te lá só mais um bocadinho... Estamos quase, não me desiludas agora, pá!"

Atestou o depósito, pagou e foi-se embora. Acendeu um cigarro e falou de si para si:
-"Mas para onde vais tu, Alice? Bem a algum lado hás-de ir dar. O importante é que saias daquele cubículo por uns tempos... nem que seja para arejar as ideias, caramba! Sim é o melhor que faço. Já sei! Vou passar pelo Journal on Time para ver se há novidades!"
*
A caminho do centro de Banbury*, faz uma chamada:

-"Estou? Alice?? És tu...?" - respondeu, do outro lado, a voz rouca de tanto falar e fumar do Sr. Cratchen, o director do jornal semanal onde Alice era editora/colunista social há já 22 anos.

-"Sim Cratchy sou eu! Surpreso, hum? Não te assustes que ainda não terminei a minha licença - riu-se com ironia - daqui a cinco minutos estou aí para vos dar um abraço!"

E antes que o Sr. Cratchen dissesse algo, Alice desligou. 
Alice trabalhava no Journal on Time  desde os tempos de faculdade - que não chegou a terminar por causa do trabalho.
Entretanto, no Jornal já Cratchy tinha retirado uma garrafa de champagne para poder brindar com Alice a sua saída da toca. Mal podia esperar por revê-la!
*
A desilusão de Cratchy ao ver Alice assemelhou-se à de uma criança cujo gelado se derrete e cai no chão!
Alice estava magra, pálida e com umas olheiras até ao queixo.

-"Porra, Alice! O que te fizeste? O que te aconteceu?"

Cratchy conhecera uma Alice ondulada. De seios avantajados. De cabelos negros e brilhantes. Longos e soltos. Uma Alice subtilmente colorida e apaixonada por si mesma. Vaidosa. Bela. Muito bela.

-"Ah, Cratchy, não exageres! Estou na mesma!" - disse de forma convincente, mas nem um pouco convencida do que estava a dizer.

Por um minuto o mundo de Alice parou ali. Reconhecera em Cratchy a expressão. Era a mesma que todos os outros por quem passou haviam feito, ainda que não lhes tivesse dado importância. No entanto, Cratchy era diferente. Amigo da família nas boas e nas más alturas desde há muitos anos. Seu patrão, não há tantos, mas já lá iam 22. Conhecia-a como à palma da sua mão. Alice sabia que jamais poderia enganá-lo aliás, nem saberia como fazê-lo se, efectivamente, o desejasse. Aguentou-se em silêncio um bom bocado e, sem saber que voltas daria para desviar o assunto, dá uma estrondosa gargalhada e diz:

-"Caramba! Venho para te visitar e recebes-me assim? Dá cá um abraço, pá!"

O Sr. Cratchen era um homem já de idade avançada, que tinha muita estima por Alice e pela sua família. Profundamente respeitado e respeitador. Cabelos grisalhos e despenteados e durante aquele minuto que o mundo de Alice parara, o dele também parou. Mil e um pensamentos lhe passaram pela ideia e não conseguia chegar a um consenso sobre o que teria acontecido à "sua Alice" durante os 3 meses que se ausentou. A verdade é que nunca a vira naquele estado e sabia que algo se passava. Agora estava certo de que Alice andaria a tentar abstrair-se de algo... Ela jamais o conseguira enganar e agora as suspeitas estavam mais que confirmadas. Não ia perguntar-lhe directamente. Mais cedo ou mais tarde, Alice contaria. No entanto, não gostava do que estava a ver.

Cratchen corre atrás da gargalhada de Alice e responde:

-"Olha, sabes que mais? Tens razão! Dá cá mas é um abraço! E que se abra a nossa champagne!" - tinham sempre uma Möet & Chandon de reserva para sempre que lhes apetecesse.

Durante o abraço, Cratchen sente o coração de Alice acelerado demais para um simples reencontro, mas tenta ignorar. Alice, por seu lado sente no afago do amigo uma forma de segurança. Não vai voltar a tocar no assunto, embora esteja ciente de que Cratchy a terá debaixo de olho. Agora mais do que nunca.

-"Sabes, Alice? Este Jornal precisa de ti - recomeçou Cratchen. Eu sei que tens coisas a fazer lá for, mas a tua coluna decaiu desde que me pediste a licença. As vendas baixaram. Não estou a pedir que voltes. Só quero que tomes nota para, quando estiveres de volta, saberes que tens que dar o melhor de ti... E também para estares preparada. As pessoas que nos lêem vão querer-te renovada. Entendes?"

-"Claro que sim. Não tenhas medo. Sabes que podes contar comigo. Mas não agora. E por falar nisso tenho que me ir embora."

-"Mas estás com tanta pressa porquê? Tens alguma coisa para fazer? Estava a pensar convidar-te para jantar lá em casa. A Brenda e os miúdos iam gostar de te rever."

-"Também eu. Tenho saudades de todos. E daquele teu Bourbon também, como deves calcular! Mas hoje não posso. Depois ligo-te, pode ser?"

-"Claro, minha querida..."

Entretanto o telefone de Cratchen toca. Alice despede-se dele com um beijo soprado e sai.
*
Foi a última vez que Alice foi vista. Já lá vão dois anos.

(...)

*Banbury - cidade do condado de Oxfordshire, no Reino Unido.



Livre participação no desafio do mês de Setembro da 

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Quero fazer amor contigo como se fosse uma deusa...

Quero fazer amor contigo esta noite, como se fosse uma deusa que nasceu para te amar…
Quero dançar no teu corpo, num bailar de véus e de sentidos, até já não haver céu…
Quero levar-te a passear por entre as estrelas num trilho de abraços e de lua e prolongar os meus braços no sal da tua pele, quando os meus lábios tocarem os teus e as tuas mãos não souberem mais como ocultar os teus anseios…
E os meus seios vão chamar pela lua e pelos ventos e, até, pelas ondas do mar…

No ondular da tua língua, no epicentro do universo da minha vontade e dos teus desejos…

Quero dançar este amor contigo numa ilha sem nome ao som dos sussurros que os teus lábios não conseguem guardar…
E quero ouvi-los em forma de gemidos entrelaçados com o som do mar…
E, ao arquejar do meu corpo, a cada compasso dessa melodia que vamos cantar, saberás que te amo mais que à vida e que dançarei até ao fim…
E, de ti, soltarás a nascente de fogo e de vida, que desaguará em mim…

E, de seguida, estenderás os braços, num abraço, para que adormeça em ti!
E eu sentirei o beijo com que fechas as cortinas da noite em que fiz amor contigo assim...


Fev 1999

Paixão para o desafio do mês de Maio da Fábrica de Letras

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O Estúdio Fotográfico


Era ainda muito cedo e Zézinho já estava a caminho. O seu irmão mais velho, o Manel, era o ardina da aldeia e antes de sair de casa para fazer chegar o mundo inteiro à sua aldeia, tinha o cuidado de o acordar. Todas as manhãs cumpriam o mesmo ritual. Manel deixava o leite já aquecido para o irmão, enquanto Zézinho lhes preparava a merenda para a bucha da manhã.
A doença repentina e posterior morte da mãe obrigara-os a trabalhar cedo. O suor do trabalho do pai não chegava para o mês todo e eles decidiram trabalhar. Manel tinha apenas mais 2 anos que Zézinho, que só contava 10. Contudo, não abandonaram a escola. Trabalhadores-estudantes eram o orgulho do pai, que por vezes se sentia envergonhado pela situação em que os tinha colocado.
~***~
Zézinho  era aprendiz num estúdio fotográfico. Todas as manhãs abria a porta da loja, subia os estores e ligava a caixa registadora. Lá dentro, na ante sala, verificava se os espelhos estavam limpos, colocava os pentes na tina, borrifava-lhes álcool para os desinfectar e matar algum piolho que lá tivesse ficado e colocava a tina à janela para que o álcool evaporasse mais depressa. Depois, dirigia-se à sala onde tudo acontecia. Reorganizava os painéis, ajeitava o conteúdo do velho baú, limpava as lentes, verificava a iluminação e a altura dos bancos – gostava de os ver nivelados à mesma altura. Tinha para si que aquele espaço deveria parecer sempre novo.
Enquanto preparava todo o cenário para mais um dia de emoções, sonhava com o dia em que deixaria de ser aprendiz e se tornaria num profissional como o Sr. Jacinto, o fotógrafo.
O Sr. Jacinto era experiente. No ramo há muitos anos, também ele havia começado como Zézinho, limpando e organizando a loja e, por isso dava muito valor ao seu trabalho.
Quando o Sr. Jacinto chegava, tudo estava pronto. E nessa altura Zézinho saía a correr para se encontrar com Manel na praça e juntos seguirem para a escola. Só tinham aulas de manhã e isso dava ao Zézinho tempo para regressar à loja e ajudar o Sr. Jacinto no que ainda fosse preciso. Afinal era seu aprendiz e queria ser como ele.
~***~
Era aí que tudo começava! A partir dessa altura Zézinho entrava no mundo mágico dos sonhos. No mundo mágico das pessoas que sonhavam acordadas. Das pessoas que imortalizavam momentos que apenas existiam para si próprias. E Zézinho sonhava com elas. Viajava com as personagens que aquelas pessoas queriam representar e com elas travava grandes diálogos.
O Sr. Jacinto dizia muitas vezes a Zézinho:
“A vida é uma fantasia. Toda a gente tem o direito de sonhar.”
Por isso o velho baú do estúdio guardava em si vestes. Não havia quem ali entrasse que não se fantasiasse de qualquer coisa. Algumas pessoas chegavam mesmo a levar adereços de casa e a oferecê-los ao Sr. Jacinto “para quem com eles quisesse sonhar!”
~***~
O estúdio era pequeno e apertado, mas lá era possível dar a volta ao mundo inteiro, quase com um passe de magia, uma simples troca de painéis. Era possível transformar o dia em noite em segundos… Sonho e realidade misturavam-se constantemente naquele estúdio.
A D. Elisa era uma dama. Uma vez por semana entrava no estúdio. Zézinho já sabia quem ela queria ser, então, à quarta-feira até ia mais cedo para preparar também as coisas dela. Adorava a felicidade com que a senhora saía dali.
Ela esmerava-se tanto nas roupas e adereços, que muitas vezes parecia mesmo uma Rainha do século XVIII. Escolhia sempre um figurino de época. Maquilhava-se já com as mãos trémulas e, para dar impressão de saúde, coloria a face com ‘rouge’. O saiote rodado e as saias enormes sobre arames, encorpavam os tecidos moles que nunca tinha tido vergonha de os mostrar. Mas ali não. Ali sentia-se como uma rainha. Preparava-se, o rosto tornava-se sério, colocava-se em pose erecta, mais por causa do corpete, e parecia que estava pronta a transformar todos à sua volta em servos e lacaios.
Ao fundo, o Sr. Jacinto prepara tudo. Escolhe o painel perfeito, com outro palácio ao fundo antecedido por um esplendoroso jardim de flores brancas e vermelhas. No centro um repuxo que brota água da boca de pequenos anjos. Alguns nobres de tal forma retratados que parecia que lhe faziam a ‘corte’. Tudo milimetricamente arranjado para que a foto ficasse perfeita. Como se D. Elisa estivesse lá, efectivamente.
O Sr. Jacinto interrompe o sonho por uns segundos:
“- Atenção… Isso mesmo… e
“buf”!
Uma e outra, e outra vez mais. O flash vai disparando à medida que D. Elisa vai mudando de ‘pose’.
Depois D. Elisa troca de roupa, sai e vai muito satisfeita. No final do dia o Sr. Jacinto levará as fotos a sua casa, para que escolha as que melhor ilustram o seu sonho…
Na ante sala outro cliente se prepara… É o Sr. João, o padeiro… vai ser comandante.
~***~
A verdade é que todos os clientes do Sr. Jacinto saiam da sua loja muito satisfeitos. De alma renovada. De peito inchado. E o Sr. Jacinto achava que ainda era vivo por isso mesmo. Por ter o dom de fazer os outros felizes.
“Toda a gente tem o direito de sonhar” e no Estúdio Fotográfico do Sr. Jacinto, todos os sonhos se tornavam realidade.
Era isso que fascinava o pequeno Zézinho e o fazia levantar-se antes das galinhas… para ajudar o Sr. Jacinto a realizar sonhos.
“Um dia sou eu que os vou realizar” – pensava ele com um sorriso nos lábios…
~***~
Lá fora a placa, em letras grandes:
FOTOGRAFAM-SE SONHOS

::encontro marcado::